terça-feira, 30 de julho de 2019

O portal da casa do meu avô


Quando era pequeno, visitava meus avós regularmente. A casa deles ficava numa chapada, no alto de um morro e tinha algumas peculiaridades que gostaria de registrar aqui.
A casa dos meus avós era colada na rua. Tinha, pelo que me lembro, duas janelas de madeira e uma porta de vidro em tons coloridos, mas como qualquer casa colada na rua, a entrada não era a porta da casa em si. Era como se fosse um pequeno cômodo coberto para você se abrigar da chuva ao entrar em casa. Nas casas mais modernas, isso foi substituído pela garagem, tão atreladas as famílias passaram a ser aos carros, mas algumas casas de minha cidade natal ainda guardam esse tipo de arquitetura (as que sobrevivem daquele tempo, na verdade).
Nesse pequeno cômodo coberto, tinhas duas portas, a porta da casa em si e uma porta que dava acesso à horta. Quando pequeno, gostava muito de brincar na horta de meus avós, portanto, a segunda porta então era pra mim a que deveria ser utilizada. E era, muito. Por vezes, lembro de chegar à casa de meus avós e encontrar primos da minha idade, cujos nomes hoje desconheço, pois eles já estavam lá se divertindo entre as plantações do vovô.
A porta da casa seguia o mesmo estilo da porta para a rua, em vidros de tons coloridos, muito utilizados como decoração no início do século 20. Já a segunda era em tom rústico, de madeira, pintada de cinza. Ao entrar por ela, se tinha acesso a um corredor que ia dar na horta, passando pela janela da sala, onde meus avós recebiam as viditas e a porta da cozinha, onde sempre tinha gente tomando um café e conversando. Não me recordo como era a rampa no fim desse corredor que dava acesso à horta, pois sempre que entravamos pela segunda porta, era obrigatório passar pela cozinha para provar alguma quitanda da vovõ.
Por fim, lembro que já não se utilizava mais a primeira porta. Não sei se ela estragou ou se era costume mesmo passar pela cozinha para se entrar na casa. Só me lembro de ver essa porta aberta em outras duas ocasiões, quando a vovó morreu e quando, um ano depois, o vovô morreu, o que me afasta a ideia de a porta ter estragado por algum motivo desconhecido.
Pense você o que aquilo representava para uma criança. A primeira porta era a entrada para o mundo dos adultos, cheio de conversas enfadonhas sobre a vida e suas regularidades, como a própria morte. O outro era como se fosse a entrada para um mundo divertido e cheio de brincadeiras e crianças cheias de vida. Era um portal simples e singelo, de madeira, mas um verdadeiro portal para um mundo de diversão.
Hoje a porta de vidro não existe mais. A casa, embora conserve detalhes de arquitetura secular, foi transformada num pequeno comércio, cujas partes traseiras provavelmente viraram depósito ou coisa assim. O portal para aquele mundo infantil não existe mais. Assim é o mundo real: abrem-se e se fecham portais de verdade.

Despedida da juventude

Quando vim morar em Belo Horizonte eu tinha uma banda. Ou melhor, eu participava de uma banda, pois a banda não tinha dono, era somente um movimento musical independente como qualquer outro que vira e mexe insurge no local onde vivi minha juventude.
A banda surgiu em um fim de semana, como qualquer outro movimento musical que aparece, desaparece e ninguém fica sabendo. Tínhamos um menino do violão e ao redor dele me aproximei ao lado de outro amigo. Tocávamos as músicas que ouvíamos, na contramão da música popular que entope as rádios e gira o comércio. Mas tudo começou quando veio aquele MP3.
Aquele MP3 tinha um nome: "Ah se eu pudesse". Aquilo me impôs um desafio muito grande. Embora eu fosse filho de um intérprete/cantor, eu não tinha talento para a música. Não tenho para a música o mesmo talento que tenho para a escrita, mas naquela época isso não era evidente em mim. E aquele MP3 gravado em casa pelo moço do violão tinha dois violões, dos quais eu fui extremamente intimado a reproduzir no teclado Cássio quatro escalas nada profissional que hoje está nas mãos de um músico de verdade.
Quando vim morar em Belo Horizonte não senti a mesma pressão daquele dia. Não. Aquele dia me impôs uma tarefa cuja habilidade eu não tinha para completar. Estudei o máximo que pude para reproduzir aquele som simples e por mais que nós ensaiássemos muito, na hora do vamos ver, eu sempre embolava aquele toquinho.
Fizemos um show... dois... três... A música foi se transformando... E embora eu me sentisse parte dela, não sentia posse sobre aquele material como sinto posse sobre meus livros. Aquela música que ainda hoje permanece guardada no meu computador faz parte da minha história. Somamos outras pessoas para executar aquele som mais algumas vezes até que chegou o dia do meu último show.
E no dia do meu último show, na véspera de eu me mudar para Belo Horizonte, eu não tive a coragem de comparecer. Hoje me arrependo amargamente disso, pois anos mais tarde descobri que a galera tinha preparado uma festa para festejar minha despedida. Frustrei a expectativa de muitas pessoas que me esperavam naquele dia, mas frustrei o sonho do menino do violão, que queria me ver executando aquele som pela última vez. Chegou um dia em que o amigo que tinha se juntado a mim e o moço do violão também teve sua festa de despedida e eu não estava presente. O moço do violão continuou a produzir música com outras pessoas e um dia teve a sua própria festa de despedida.
Nesse meio tempo, a música foi gravada e hoje está disponível no Spotify, (não na versão original, é claro). Você pode ouvir procurando TriadeRock nesse aplicativo de música. O moço do violão tornou-se escrivão da Polícia Civil e parou de compor. "Ah se eu mudasse o vento, se eu parasse o tempo, se eu tivesse um senso... Nada mais de errado eu faria, essa dor estaria controlada em mim. Mas não dá pra prever o futuro. (...) E se o que eu digo não fizer nenhum sentido, terei sempre você[s] comigo".

Para Vitor Freitas e Lincoln Sette